Zé Fini!

Compreendi que a situação era grave quando meu pai, pela primeira vez em muitos anos, não quis assistir ao Jornal Nacional. Preferiu dormir. Chegou do hospital visivelmente cansado e ainda mais abatido do que quando saiu. Não me lembro de tê-lo visto aparentar tristeza assim muitas vezes. Chorar mesmo foram duas. A primeira foi quando meu avô faleceu no ano 2000 e a segunda sete anos mais tarde quando minha irmã sofreu o acidente. Pra ser sincera, em 2007 na verdade, só vi vestígios do pranto e soube, dias depois, que ele havia desaguado abraçado à minha mãe.

Na morte do meu avô, ele ficou atordoado, confuso, como se não soubesse o que fazer. Perder um pai deve ser um evento revolucionário realmente. Pegou a agenda, buscou um nome e logo digitou um número no telefone: <<Tia?>>, parou por alguns segundos. <<É o Zezé… Meu pai morreu! Passou dessa pra melhor. Bateu as botas. Cruzou o cabo. Cantou pra subir. Zé Fini!>> Assim ele deu a notícia e riu. Minutos depois, ficou encostado na janela olhando pro nada e refletindo sobre memória que nunca terei acesso. Ali, uma lágrima solitária escapou de seu olho direito e varreu seu rosto com rapidez, mas a gota foi interrompida de sua rota e não chegou a desembocar no queixo; com um movimento certeiro, ele limpou o rosto e se movimentou um pouco pra sair daquele estado de contemplação. Diz que homem não chora

Nos dias que seguiram aquela primeira consulta, ele conseguiu cumprir o compromisso marcado com o William Bonner com certa frequência, mas é só ter uma nova ida ao médico que o desânimo reaparece e o boa noite do apresentador fica lá, ecoando pela sala feito bolinha de ping pong que nunca é rematada.

Meu pai não é um pai tradicional. Entendi cedo que Seu Zé Roberto não fazia a linha do pai herói e, pelo bem ou pelo mal, ele deixou isso claro logo de cara. Durante nossa infância, não foi um pai mediano, o esquema dele era mais tirar um 10 ou um 2 e isso revela muito sobre a educação emocional que teve. No que diz respeito às suas notas altas, temos as noites de brincadeira em família, samba-rock, historinhas contadas na cama (sempre as mesmas três), muitas aulas de geografia e um video-game Sega Saturn – a razão do dia mais feliz da minha vida, entre muitos outros episódios. Sobre suas notas baixas: alguns nós.

Se afastou das drogas – até onde sei – quando eu tinha por volta dos oito anos. Nas décadas seguintes, o vi bêbado ou alegre algumas vezes, mas nada que se comparasse com aquela fatídica e, pelo menos pra mim, engraçada manhã de sábado: minha mãe, irmãs e eu nos preparávamos para ir ao centro espírita que frequentávamos, o Grupo Fraternal Hilarion. O pai tinha passado a noite anterior sextando com amigos e chegou em casa de madrugada. Minha mãe, obviamente, tava com muita raiva, tanta que resolveu dar uma lição de moral na frente das filhas. Entrou no quarto, acendeu a luz e nos colocou paradas na parede observando aquele homem que sequer tinhas forças pra responder qualquer acusação, tamanha ressaca. No meio do sermão vexatório dela, meu pai nos lançou um olhar que me fez sentir pena.

<<Mamãe… ele vai chorar…>>, sussurrei.

<<Tá vendo? A menina preocupada com você…>>, continuou minha mãe impiedosa, <<É isso o que você tem de melhor pra dar as suas filhas?>>, meu pai fez um sinal negativo com a cabeça e antes que qualquer outra palavra saísse da boca de minha mãe, um vômito espesso e muito fétido saiu de seu corpo e ele vomitou por muito tempo. Sério, ele vomitou pra caralho! Minha mãe ficou paralisada, em choque. Já minha irmã e eu nos abraçamos. Era cena de exorcismo e hoje, eu acho mais cômica que trágica. Meu pai é ótimo no gênero tragicomédia.

Uma vez, me colocou um par de patins e me incentivou a descer a ladeira da Bastos Tigres, rua onde vivíamos. Lembro de ouvir uma voz interior me dizendo para não ir, mas segui o conselho do pai. PORQUE NÉ, PAI. Acontece que os patins ganharam velocidade, obviamente, e a única coisa que lembro é que olhei pra trás assustada e ainda consegui vê-lo levar as duas mãos à cabeça pra em seguida, ir parando de correr como se desistisse de me alcançar. Talvez, aquele tenha sido o instante em que perdeu todo o cabelo. Ficou claro que eu não podia contar com nada além de Deus naquele momento e ele me mandou uma salvação: no meio do caminho brotou uma crente. Com roupa e jeito de crente. Cabelos que passavam do joelho, uma saia que mal deixava seus pés à mostra e uma bíblia debaixo do braço. Me agarrei ao corpo dela já pedindo perdão e ela gritou um “MISERICÓRDIA” enfático de volta. <<Tá repreendido em nome do senhor! Que que isso, menina… Cê quer me matar do coração?>>, meu pai nos alcançou rindo e pedindo desculpas… a ela minutos depois.

Quase um mês se passou desde o dia do diagnóstico até o momento que escrevo essas palavras. Em casa, o ambiente começa a ficar pesado quando o palavra câncer surge. É uma palavra dura, difícil de ser desviada, e que lembra todo o tempo o quanto a vida é finita; o adjetivo que mais consegue dar cabo de tudo que ela é.

Nada.

Um fluxo contínuo de aleatoriedades que, de vez em quando, entram em rota de colisão umas com as outras em espaço X tempo. Se positivas são chamadas de coincidências. Do contrário, tendem a ser nomeadas ironias ou fatalidades. Seguimos a travessia na esperança de sempre conseguir escapar a tempo do último grupo.

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